Exposições // Passado
Artista:
Júlio Pomar
Curadoria:
Sara Antónia Matos
05.04.2013 // 29.09.2013

A exposição de abertura do Atelier-Museu revela parte do acervo que a Fundação Júlio Pomar deposita neste museu municipal e procura sinalizar alguns dos períodos mais relevantes da obra do artista. Além de obras pertencentes ao depósito, a exposição inaugural engloba outras emprestadas por instituições de relevo e colecções onde o artista está representado, que se consideram fundamentais no percurso do autor.

Considerando cada pintura como parte integrante do conjunto que forma a obra no seu todo, o critério expositivo adoptado para a primeira mostra do acervo não segue a ordem cronológica de montagem das obras no espaço. A exposição configura-se em quatro núcleos principais que permitem revisitar o percurso do artista em diferentes fases de produção, desafiando o espectador a descobrir as relações entre as obras, entre as diferentes linguagens adoptadas e a reflectir sobre as questões que nelas se colocam.

Um núcleo é dedicado às décadas de 80 e 90, com as quais o artista efectiva um regresso à pintura depois de ter explorado outros meios plásticos, desenvolvendo uma linguagem pictórica onde a cor e o gesto expressionista encontram o seu expoente máximo.

É disso exemplo a série que dedica aos índios da Amazónia, na região do Alto Xingú, após uma estadia em que o pintor acompanha a rodagem do filme “Kuarup”, de Ruy Guerra. O contacto com essa comunidade é uma experiência que transformará a génese do olhar do pintor, isto é, o modo como daí em diante passará a olhar a realidade, transpondo-a para as suas pinturas. Através destas, representando o modo livre como os índios se movimentam, se banham, se entrelaçam, sem atender aos constrangimentos de ordem social, o artista ensaia diferentes relações entre os corpos e o espaço circundante. Da vivência temporária naquela comunidade terá apreendido, acima de tudo, que o acto de ver ultrapassa a imediatez da imagem, que esta se compõe de múltiplas espessuras e camadas, sendo necessário manter o olhar liberto de formatações e preconceitos instalados.

Deste período, encontram-se também algumas obras da série “Mascarados de Pirenópolis” uma festa de manifestações profanas e religiosas, que o pintor observa nas festas do Divino Espírito Santo, na cidade de Pirenópolis, no Brasil. Nessas festas, consagram-se ritos ancestrais que englobam uma dimensão mítica, festiva e ritualista da humanidade. Durante o ritual, o mascarado típico veste-se com roupas feitas daquilo que encontra, muitas vezes de cor intensa, adornadas com flores de papel. Usa ainda uma máscara alusiva ao boi, à onça ou ao diabo, através das quais alude aos sacrifícios e à morte. Figuras simpaticamente estranhas e assustadoras, os “Mascarados de Pirenópolis” assumem no Atelier-Museu um carácter quase xamânico. Elas são, de facto, as guardiãs do espaço.

Num âmbito simultaneamente irreal e antropomórfico, a sua pintura passa a explorar um campo de associações inesperadas, onde elementos díspares – animais e seres humanos, objectos e máscaras, formas e cores – se conjugam hibridamente na superfície do quadro, aparecendo e desaparecendo dela, voltando a emergir, ligando-se e recusando qualquer lógica pré-estipulada. Deste então até aos dias de hoje, a superfície da tela, assumindo-se como um ecrã da memória, dá a ver signos ambíguos que remetem para outros não visíveis, potenciando um campo de associações fecundo e que recusa qualquer enquadramento estilístico.

Outro núcleo da exposição debruça-se sobre o período que ocupou a década de 60 e onde se opera uma autonomia da pintura enquanto meio de expressão. Embora nestas obras se possam reconhecer temáticas referentes às corridas de touros ou cavalos, não pode dizer-se que esse seja o seu tema central. Neste período, o artista enveredou por uma linguagem gestual cujo principal objecto de exploração é o movimento em si mesmo. O núcleo é complementado por desenhos e algumas gravuras que mostram como os princípios propostos pela disciplina da pintura reaparecem e são explorados através de outros meios plásticos.

Um recuo no tempo permite revisitar a pintura do período neo-realista das décadas de 40 e 50, expressão que se queria próxima da realidade social, politicamente empenhada e sobretudo legível pelo observador. Empenhado num exame atento da realidade, Júlio Pomar não admite, contudo, reduzir a sua prática artística a uma interpretação legível. Caracterizada por tons escuros e traço curvilíneo, sinuoso, a linguagem pictórica deixa entrever figuras entre figuras, como é patente na obra “Resistência”, ou assume uma rigidez formal que confere às formas o aspecto de máscaras ou sólidos geométricos, tal como em “Azenhas do Mar”. Capaz de comunicar por via metafórica aquilo que não pode ser dito de forma explícita, a pintura de Júlio Pomar correspondente a este período não passa indelével no contexto político de então, não pode ser esquecida na génese da sua obra e, como tal, não pode deixar de estar presente neste Atelier-Museu, cujo lugar simboliza a origem da actividade artística.

Um último núcleo permite encontrar obras representativas de um dos períodos mais audazes do percurso de Júlio Pomar, senão mesmo aquele que determinaria definitivamente a sua linguagem plástica: a colagem e a assemblage. Complexo de apreender pela pluralidade de referências que aí concorrem, é no universo da colagem que o artista equaciona o seu trabalho de forma mais radical. A colagem, iniciada por Braque e Picasso no início do século XX, ganha aqui uma amplitude livre e audaciosa. Além de um questionamento sobre a realidade do quadro, que agora agrega em si pedaços do real quotidiano (recortes de papel, cartões, tecidos e outros objectos), o suporte de expressão é o lugar para projectar as várias dimensões do corpo. Camada sobre camada, como pele sobre pele, o artista dá a ver ao espectador que a obra é o lugar do corpo e, portanto, o lugar do sentir, das suas relações e dos seus enredos eróticos, algo corporizado, por exemplo, em “La table de l´architecte” (1977). A ideia de junção e conjugação presente em tais colagens, é patente também nos três desenhos em exposição, cujo título “Étreinte” (1979) reforça quer o entrelaçamento entre os corpos quer a sua possibilidade de encaixe. Neste âmbito, não é estranho o surgimento de colagens onde o corpo humano se funde e confunde com o mundo animal dos felinos. O corpo é o lugar do sentir, e nele não há refreio que condicione o desejo. Só com ele, através dele, o mundo pode revelar-se na sua integridade.

[Sara Antónia Matos]

© Luísa Ferreira / 2013

© Luísa Ferreira / 2013

© Luísa Ferreira / 2013

© Luísa Ferreira / 2013

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