Exposição
Curadoria:
Sara Antónia Matos / Pedro Faro
22.10.2020 // 28.02.2021
Inauguração:
22.10.2020 às 10:00
Mais informações:

O Atelier-Museu Júlio Pomar/EGEAC inaugura a exposição “O desenho impreciso de cada rosto humano, reflectido. Retratos de Júlio Pomar”, com curadoria de Sara Antónia Matos e Pedro Faro, no dia 22 de Outubro, quinta-feira, a partir das 10h (até 18h). A exposição irá incidir sobre modo como Júlio Pomar pensou o género artístico do Retrato ao longo de mais de 70 anos, atravessando as suas diversas fases de criação, desde o Neo-realismo, na década de 1940, até 2018, ano em que morreu. A pintura e o desenho de retrato dá conta, em parte, das várias relações que o artista foi estabelecendo com diferentes pessoas, do seu círculo de contacto mais pessoal, e com figuras notáveis de diferentes domínios da sociedade portuguesa. Além disso, mostram-se vários autorretratos, também de diferentes momentos da vida do artista.

Para esta exposição, reúnem-se, assim, cerca de 50 obras de pintura, desenho, escultura, assemblagem, algumas nunca antes mostradas, provenientes do acervo do Atelier-Museu Júlio Pomar, de várias colecções privadas e do espólio do artista na posse da sua família. Incluem-se retratos, entre outros, das seguintes personalidades: Mário Soares, Fernando Pessoa, Bocage, Carlos do Carmo, Cristina Branco, Mariza, Claude Lévi-Strauss, Camões, Baudelaire, Mallarmé, José Cardoso Pires, Graça Lobo, Tereza Martha, Maria Lamas, Almada Negreiros, José Manuel Galvão Teles, António Vitorino de Almeida, Samuel Beckett, Dante Alighieri, Mário de Sá Carneiro, Vasco Graça Moura, Ruth Escobar, Norton de Matos, Orlando Costa, Ilse Llosa, Eugénio de Andrade, Mário Dionísio, Alice Jorge, Manuel Vinhas, Beatles, entre outros.

O retrato é uma das categorias clássicas da história da arte, com uma longa tradição mas também modos de renovação, visíveis na produção de Júlio Pomar nos diferentes registos, suportes e técnicas assumidas, resultando em abordagens mais e menos estilizadas, mais e menos gestuais, definidas ou difusas. O título da exposição é “roubado” a um poema de Miguel Torga, “O Narciso”, figura mitológica que, no reflexo da água, procura ver a sua imagem fugidia, “A ele, artista, sábio e pensador,/ Que denodadamente se procura!”. Como refere o título, com esta exposição procurou-se perceber os modos de acção do artista, trazendo para o centro da atenção a importância que o desenho, o esboço ou o estudo assumem no seu trabalho, particularmente neste âmbito do retrato, mesmo quando o desenho acontece não apenas isoladamente, enquanto registo autónomo, mas na própria pintura. Os retratos de Júlio Pomar surgem no âmbito de diferentes interesses e circunstâncias: relações pessoais e afectivas, literatura, música, política, afinidades culturais e ideológicas, e por vezes resultado de dinâmicas decorativas ou de encomenda. São exemplo dos últimos, os retratos de Fernando Pessoa, Bocage, Camões e Almada para o metropolitano de Lisboa ou de Edgar Allan Poe, Charles Baudelaire, Stéphane Mallarmé e outros, para obras literárias, e ainda de António Champalimaud para um monumento instalado na Fundação Champalimaud.

Se alguns dos retratos iniciais assumem uma construção que remete para Picasso ou modos de representar mais naturalistas/realistas, variando entre o registo quase diário – desenhos da prisão – e trabalhos mais demorados no âmbito da pintura, os retratos do final da década de 1960 e 1970 surgem enformados pelas experiências que o artista vinha desenvolvendo desde finais da década de 1960 e ao longo da de 1970, em torno da desconstrução da figura e da fragmentação do corpo, na senda de referências como Ingres e Matisse. Pode dizer-se que os primeiros retratos, de que é exemplo o de Maria Lamas, importante fotógrafa documental, embora por vezes desconhecida, e feminista, estão ancorados numa lógica de semelhança mais óbvia ou convencional, salientando-se o virtuosismo do trabalho de pintura. A este propósito, recorde-se o que diz o pintor: «a semelhança no retrato é para mim fundamental. […] A semelhança funciona como a marca. É como o nome escrito. O resto vem quase que involuntariamente e tem por função accrocher o personagem à tela.»[1]

Não significa, porém, que a linguagem mais estilizada de décadas posteriores não seja capaz de dar conta dos traços distintivos de cada rosto – o que é evidente, por exemplo, no retrato de Tereza, esposa do artista, da qual se mostra uma pintura em tons de verde e vermelho, onde o seu perfil é estilizado, reduzido a linhas/planos geométricos até ao extremo, mas ainda assim imediatamente reconhecível. Os desenhos que antecedem esta e outras pinturas de retrato realizados por Júlio Pomar, dos quais muitos se mostram pela primeira vez ao público, mostram como a apreensão do rosto em causa, em diferentes registo, nunca perde o traço distintivo que o caracteriza.

A partir da década de 1970, os retratos pintados, sobre tela, são gerados a partir de exercícios de memória (fragmentos de memórias), ou a partir do auxílio de fotografias que acentuam as características peculiares de um rosto. Daí também o gosto pela síntese e o interesse em cultivar uma metodologia de invocação. Através dela, o pintor recorre à memória, invoca o seu poder de selecção, e recupera dela as partes e os aspectos distintivos de um rosto, os quais, isolados, servem para elaborar uma heráldica do corpo, composta por sinais, longe já do retrato fotográfico ou naturalista mas que torna possível o reconhecimento de uma face em particular.

A categoria retrato – relembre-se, especialmente, o polémico retrato de Mário Soares para a Presidência da República, mas também o do filósofo francês Claude Lévi-Strauss – é uma constante no percurso de Júlio Pomar. Desde cedo, ocupou-se de retratos de outros, de si próprio, de grupo ou individuais. Voltou ao retrato e ao auto-retrato periodicamente.

Por isso, além de acompanhar os desenvolvimentos das várias expressões plásticas, ciclos e séries feitos pelo artista, a forma como esta categoria específica é trabalhada ao longo de mais de setenta anos revela também as relações que o artista estabeleceu com os seus correlativos ao longo da vida. De facto, os retratos oferecem como que um mapa das suas ligações afectivas, familiares, intelectuais, ideológicas. Eles pontuam o seu trajecto de amigos, paixões, ou figuras que admirava, entre outras, mortas e vivas.

Porém, na realização de um retrato, algo é constante para este artista. Como o próprio refere a Helena Vaz da Silva: «as coisas entram, são caldeadas e o que fica é mais um sentido, uma alusão a, do que uma soma de pormenores»[2]. Para ele o «retrato olha todo o ser»[3] e não apenas uma parte. Assim, justifica-se que o trabalho comece com a análise atenta e a subsequente desconstrução da figura observada, algo que o pintor descreve como etapa essencial. «Quando faço posar o modelo, o trabalho mais excitante começa no momento em que sinto a necessidade de apagar, ir desfazer a imagem registada no papel, para deixar agir um poder-elaborante, não directamente consciente.»[4] O que fica desse processo é um rasto: sinais, vestígios e índices de uma experiência de relação.

No que toca aos retratos de Tereza, por exemplo, vale a pena enaltecer a elegância do perfil bem como sublinhar a tranquilidade que transmitem, comprovando a imensa habilidade do pintor para captar, fixar e dar corpo ao carácter de cada persona, e não só a sua aparência física.

Pomar realça as qualidades psicológicas das pessoas em causa dizendo que “os retratos da Tereza vêm no fim do ciclo e são retratos serenos. Nos últimos há como uma multiplicação-desmultiplicação da figura central. Operação que fará a passagem para as histórias ditas eróticas as quais, mais o trabalho por découpage e assemblage, caracterizam a fase que começa em 76/77.»[5]

Entende-se então que, para Júlio Pomar, a necessidade de síntese e, por sua vez, a dificuldade em fazer essa síntese, em chegar a ela, constitui a maior exigência de um retrato.

Isso leva-o a afirmar sobre a execução de um retrato: «encontro dificuldades extremamente objectivas que marcam uma diferença muito grande em relação ao trabalho de um [outro] quadro. Por exemplo, aqui nos tigres, eu vou à deriva, não tenho cais acostáveis. Enquanto que, com a presença do retratado, eu tenho um cais, em que posso – é claro – ir quebrar as minhas costelas […]. É um combate extremamente excitante e extremamente fatigante.»[6]

Contudo, poder-se-ia dizer que é através deste «combate», estimulante, esgotante, impossível, que Pomar se constrói a si mesmo, enquanto pintor e persona. Talvez isso explique que o género retrato tenha pontuado todo o seu percurso até 2018, ano da sua morte.

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Esta exposição é ainda ocasião para a publicação de um livro em braille e escrita normovisual, com quatro pequenas entrevistas, depoimentos, de personalidades retratadas por Júlio Pomar.

A publicação e as réplicas tácteis agora disponíveis ao público por marcação (respeitando as normas de segurança e prevenção impostas pela pandemia covid-19) fazem parte de um conjunto de materiais produzidos pelo museu com vista à inclusão, cada vez mais premente em tempos de isolamento social.

Além disso, a exposição será ainda ponto de partida para um trabalho realizado com a escola de Ensino Artístico António Arroio, que este ano visa explorar, no contexto do projecto DESCOLA do Atelier-Museu Júlio Pomar/EGEAC, um conjunto de temas afins ao retrato e ao rosto como a de identidades múltiplas e fluidas.

[1] in Helena Vaz da Silva e Júlio Pomar, Helena Vaz da Silva com Júlio Pomar, Afinidades Electivas, Edições A. Ramos, Lda., Lisboa, 1980,  p. 65.
[2] Helena Vaz da Silva, op. cit., p. 24.
[3] Helena Vaz da Silva, op. cit., p. 62.
[4] Helena Vaz da Silva, op. cit., p. 24.
[5] Helena Vaz da Silva, op. cit., p. 68.
[6] Helena Vaz da Silva, op. cit., p. 64.

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